REGENERADO PARA VIVER NO REINO DE DEUS

 

Natanael Diogo Santos

 

A regeneração é uma das doutrinas bíblicas mais relevantes para a vida do homem. Deus em Cristo promove pelo seu Espírito um novo nascimento na vida das pessoas. Uma pessoa genuinamente regenerada é capacitada pelo Espírito para ter o prazer de amar a Deus acima de qualquer coisa. O crente em Jesus não deve entender a regeneração como um assunto introdutório da fé cristã. Nem o ter como um assunto cansativo, enfadonho ou repetitivo. Certa vez George Whitefield respondeu a uma mulher que reclamava por ele pregar continuamente sobre a regeneração:

 

[…] Whitefield, estava continuamente expondo a necessidade da regeneração como o “grande tema” 13 da sua pregação. Uma história repetida muitas vezes conta que uma mulher perguntou a Whitefield, após um culto de pregação: “Por que o Sr. fica dizendo-nos: Importa nascer de novo?” O grande evangelista respondeu, “Porque, querida senhora, é preciso que nasças de novo (Loyd-Jones apud LAWSON 2014, p. 89).

 

A resposta de Whitefield parece cômica, mas na verdade ela mostra o quanto esse grande evangelista e pregador do século XVIII tinha o zelo pela doutrina da regeneração. Nesses dias, não pode ser diferente, mas precisa-se pregar, escrever, ler e ouvir continuamente a doutrina do novo nascimento, porquanto é essencial para a edificação da Igreja do Senhor e esperança da transformação espiritual para os ímpios. 

Na Bíblia, há muitos textos relevantes que falam sobre regeneração ou novo nascimento. Sobretudo, o seguinte assunto será abordado pela exposição do texto de João 3, onde fala do encontro de Jesus e Nicodemos. Os milagres realizados por Jesus foram o estímulo pelo qual se deu o ponta pé inicial ao diálogo (Jo 3.1). 

O nome Nicodemos pelo visto era muito comum em Israel. Nicodemos é a transliteração grega do nome hebraico Nikdimom.  Havia um homem por nome Nikdimon ben Gurion, que era um cidadão muito rico; seria o mesmo que se encontrou com Cristo descrito no Evangelho do apóstolo João? Em resposta, não se pode considerar que a narrativa joanina está falando a respeito desse judeu abastado. Segundo D.A. Carson (2007), Nikdimon não pode ser o mesmo Nicodemos que se encontrou com Cristo, dado que, no tempo do ministério de Jesus, aquele teria quarenta anos de idade; argumenta-se portanto, que por causa da sua pouca idade ele não poderia pertencer ao Sinédrio, logo, não pode ser o mesmo Nicodemos do evangelho de João. Além do mais, o Nicodemos de João era um homem velho (3.4). 

A passagem qualifica Nicodemos como um dos fariseus que distinguia-se entre os judeus (3.1). Ele era um mestre que pertencia ao Sinédrio, um tipo de Supremo Tribunal, composto por setenta e um membros que formavam um órgão legislador em Israel. Craig S. Keener (2017), baseado na posição de Nicodemos no contexto religioso da sua época, noticia ele como um homem muito rico.

Esse diálogo é realmente um fato histórico. O autor é específico em registrar que o encontro entre o fariseu e Jesus aconteceu durante a noite (3.2). É importante ressaltar que o termo “noite” pode estar se reportando a um encontro secreto (19.29). Baseado no contexto imediato pode referir-se ao estado da vida espiritual em trevas (3.19-21). Pelo contexto geral do Evangelho, confirma que esse encontro noturno diz respeito também a uma vida espiritualmente em trevas (9.4; 11.10; 13.30). 

Para Nicodemos sair dessa tenebrosidade espiritual e se encontrar com a luz da vida, era necessário ele tomar a decisão de nascer de novo. O novo nascimento é uma regeneração que recebe uma operação vinda do alto. Assim, a pessoa seria agora envolvida pela natureza moral do Reino de Deus. Na oração Dominical ou oração do Pai Nosso, diz: “venha o teu reino; seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6.10). Nessa oração fica evidente que somente é possível fazer a vontade de Deus se primeiro invocar o reino para ser dominado pela sua natureza. O ensinamento de Cristo sobre viver a natureza do reino, era uma forma de dizer que ninguém consegue cumprir a vontade do Senhor pela sua capacidade religiosa, porém, isso seria possível apenas pelo poder do reino dominando a vida do homem.

Jesus, para explicar sobre a regeneração, usou a figura do nascimento natural para ilustrar o nascimento espiritual. Nicodemos, aparentemente, não entendeu a ilustração de Cristo, porquanto, o fariseu indagou o Mestre dizendo: “como pode um homem nascer, sendo velho? Será que pode voltar ao ventre materno e nascer uma segunda vez?” (Jo 3. 4). Nicodemos não usou essa pergunta de modo figurado, declarando que a sua volta depois de velho ao ventre de sua mãe seria uma ilustração de que ele desconstruiria toda sua antiga vida religiosa e abandonaria o judaísmo. Na verdade, o fariseu entendeu que Jesus estava falando realmente e literalmente do nascimento natural. O Mestre vendo que Nicodemos estava se referindo ao ato de uma mãe dar à luz a um filho, o corrige abordando as seguintes palavras: “O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito” (3.6). Cristo realmente estava se reportando ao nascimento pelo Espírito Santo, ou seja, um nascimento espiritual. Depois, o texto descreve que Nicodemos não estava compreendendo o que Jesus lhe ensinava (3. 9,10). 

Cristo depois de afirmar sobre obter o Reino de Deus pelo novo nascimento, agora, explicaria como se dará esse novo nascimento: “Em verdade, em verdade lhe digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus” (3.5). O texto é grego, contudo, a mentalidade é judaica. Quando a frase “em verdade” é repetida, segue a um método da literatura judaica em que a repetição de uma palavra envolve a ênfase de uma ideia. Então, ao usar a expressão “em verdade, em verdade”, Jesus estava chamando a atenção de Nicodemos sobre algo muito relevante que ele iria ouvir para o benefício de sua vida: o nascimento espiritual produzido pela água e o Espírito. A oração “nascer da água e do Espírito” tem sido motivo de muitas especulações interpretativas, principalmente na parte que diz: “nascer da água”.

Para entender o significado da expressão “nascer da água”, primeiro será explicado o que ela não significa: (1) não significa o nascimento pela Lei, até porque o Novo Testamento associa a Lei externa com a morte e não com o novo nascimento (2Co 3.4-7); (2) não significa nascer do batismo nas águas, porquanto, o texto gramaticalmente ( que será explicado logo  adiante) não aprova tal interpretação; (3) não significa nascer da Palavra, dado que, ficaria incoerente com a ideia do diálogo e  a construção do autor apresentada no contexto do Evangelho.  

A oração “nascer da água e do Espírito” nas traduções em português é regida por duas preposições (“da” e “do”), que dá o sentido de que a água e o Espírito são dois substantivos distintos e que fazem duas ações diferentes. Já quando se consulta a língua original do Novo Testamento, o grego, a seguinte construção da passagem é descrita da seguinte maneira: eks hydatas kai pneumatos. Linda Belleville apud Carson (2001, p. 40) observa que o texto grego mostra que a seguinte expressão é regida apenas por uma preposição (eks – “da”), e não por duas como é visto no português. O que leva ao entendimento de que o novo nascimento é realizado apenas pelo Espírito Santo (Jo 3.8). Considera-se que Jesus estaria associando a regeneração com a passagem de Ezequiel 36. 25-27, que diz:

Então aspergirei água pura sobre vocês, um espírito novo, e vocês ficarão purificados. Eu os purificarei de todas as suas impurezas e de todos os seus ídolos. Eu lhes darei um coração novo e porei dentro de vocês um espírito novo. Tirarei de vocês o coração de pedra e lhes darei um coração de carne. Porei dentro de vocês o meu Espírito e farei com que andem nos meus estatutos, guardem e observem os meus juízos.  

 

             Carson (2001), em anotações, afirma que a passagem escatológica de Ezequiel que diz que Deus daria um coração e um espírito novos ao povo da aliança, seria o novo nascimento promovido pela água e o Espírito ensinado por Cristo. A premissa de que o texto grego possui apenas uma preposição regendo a água e o Espírito denota que o novo nascimento é feito por duas ações da terceira pessoa da Trindade. E está em concordância com a passagem de Ezequiel que o Espírito Santo como água purifica e como pessoa aplica a natureza do reino, já no Novo Testamento essa natureza é classificada também como o fruto ou caráter do Espírito na vida das pessoas (Gl 5.22, 23). O contexto do Evangelho de João, semelhantemente, contribui para associar a água com a ação purificadora do Espírito para uma nova vida em Cristo (Jo 4.13,14, 24; 7. 37-39).

No início do ministério terreno do Filho de Deus, Nicodemos, depois de ter se encontrado com ele, ouviu do próprio Cristo a alusão ao novo nascimento que se daria em função da sua morte – que Ele seria levantado como a serpente de bronze foi levantada por Moisés no deserto; no propósito de mais tarde abrir as portas para o ministério do Espírito Santo realizar a regeneração na vida de homens e mulheres em todo o mundo a fim de obterem o reino e a vida eterna (3.14-16). O Reino de Deus e vida eterna são considerados nesse contexto com o mesmo sentido.  

No fim da vida e do ministério terreno de Cristo, Nicodemos se deparou mais uma vez com Ele. Agora, O vendo pendurado em uma cruz entre o céu e a terra. Depois da morte do Filho de Deus, Nicodemos teve a atitude de pedir o corpo do Mestre para o sepultamento (19.39). Por conta disso, partimos do pressuposto que o velho fariseu, agora era um novo homem em Cristo, pois ele não tinha mais medo de ocultar a fé em Jesus. Essa regeneração promovida pelo Espírito mudou Nicodemos das trevas para a luz. Da morte espiritual para a vida eterna. Do reino da religião para o Reino do Filho amado de Deus (Cl 1.13). 

O novo nascimento promovido e aplicado pelo Espírito Santo garante um novo coração e um novo espírito no sentido de capacitar o homem para obedecer aos mandamentos do Senhor. Na sua Primeira Epístola, João argumenta que uma pessoa que alcançou o novo nascimento da parte de Deus, não acha os mandamentos do Senhor pesados (1Jo 5.3). Esses mandamentos, no contexto da missiva do apóstolo, compreendem o amor a Deus e ao próximo – o resumo da Lei (Mt 22.36-40). Isso mostra que o homem para amar a Deus com toda a sua força, alma e entendimento e ao próximo precisa passar pela regeneração realizada pelo Espírito. Tendo em vista, que sem a natureza do reino é impossível o homem por meio dos seus méritos e força religiosa cumprir os estatutos e juízos do Senhor.  

A natureza do reino na vida de um homem regenerado mostra uma transição do futuro para o presente e do presente para o futuro. Para ser mais específico, seria melhor explicar essa transição do Reino de Deus na vida do ser humano pela abordagem teológica do “já e ainda não”.  O “já” se reporta que o futuro foi inaugurado no presente, o “ainda não” é que o futuro não aconteceu, mas será um dia consumado. O homem que nasceu de novo “já” está vivendo no presente a salvação, a santificação a regeneração, a justificação, porém, não de forma plena. O “ainda não” afirma que a salvação e seus frutos não estão sendo vivenciados de maneira plena, entretanto, um dia eles serão experimentados na consumação da nova criação, que se dará na eternidade.  

Em última análise, o novo nascimento inaugura a natureza do reino, trazendo o futuro para o presente, mas em um determinado momento, o reino presente será consumado no futuro. Nisso compreende-se que, o Reino de Deus é tanto presente quanto futuro. O reino presente é invisível e tem a característica de Cristo reinar nos corações dos homens. O reino futuro tem a característica de que o cristão reinará com Cristo na eternidade. Em suma, o reino presente é a ponte para o cristão passar a viver a salvação eterna no futuro.  Grosso modo, conclui-se que, Nicodemos entrando no reino, inauguraria o futuro no presente, para mais tarde viver o que viveu no presente de forma plena no futuro escatológico. 

 

REFERÊNCIAS

CARSON, D.A. Os Perigos da Interpretação Bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2001.

____________. O Comentário de João. São Paulo: Shedd Publicações, 2007.

KEENER, S. Craig. Comentário Histórico-Cultural da Bíblia: Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2017. 

LAWSON, J. Steven. O Zelo Evangelístico de George Whitefield: Um Perfil de Homens Piedosos. São José dos Campos, SP: Fiel, 2014.

RICHARD, O. Lawrence. Comentário Histórico-Cultural do Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2012.

VINCENT, Marvin Richardson. Estudo no Vocabulário Grego do Novo Testamento: Volume 2. Rio de Janeiro: CPAD, 2013.